Esse fim-de-semana houve um evento do meu curso chamado "Cuidando do Cuidador". Fiquei um pouco reticente sobre isso, eu teria de acordar cedo, coisa que eu não venho fazendo já um bom tempo. O evento ocuparia boa parte do dia, não teria muito tempo para atividades de lazer. Porém, sabia que tinha uma importância ir, marcar presença nesse espaço. Talvez não seria um grande sacrifício, haveria outros fins-de-semana para curtir o tempo livre.
No sábado, consegui acordar num horário razoável. Cheguei um pouco atrasado, mas o evento ainda não tinha começado. Quando cheguei no prédio, estranhei, pois era uma galeria que já tinha passado algumas vezes. Subi até o último andar, lá entrei numa sala que tinha uma escada circular. Ouvi uma voz lá de cima me chamando. Subi a escada e me deparei com uma sala com várias almofadas. O espaço era bem confortável.
A atividade que foi proposta basicamente durou o dia inteiro. Foi uma boa experiência para introduzir cada pessoa ao grupo, pois seria a primeira vez que nós tínhamos nos encontrado presencialmente. As facilitadoras colocaram fichas com imagens de animais no chão, deveríamos escolher um animal em que nos identificaríamos. Escolhi o corvo. Depois fizemos grupos para discutir nossa relação com esse animal. Eu imediatamente consegui reconhecer aquilo que me fez conectar com esse animal. O corvo seria um animal da noite, uma figura sombria, que vive a margem. Existe algum elemento de estranheza no corvo, ao mesmo tempo de uma seriedade soturna que me identifico. Sempre me sinto a margem de tudo, como um observador alheio ao mundo. Esse elemento de estranheza, de distinção, me contempla muito.
Para ilustrar um pouco que estou dizendo, gostaria de escrever um pouco sobre o significado do corvo em específico:
Têm um aura de algo sinistro. Suas grasnadas podem tanto serem vistas como inspirações de coisas celestiais, tanto quanto parecer algo de inconveniente, desinquietantes e destruidoras do status quo. São portadores de mistérios velados. Os corvos do deus nórdico Odin, Hugin e Munin ("Pensamento" e "Memória) podem ferir nossas ilusões e pretensões. Representa o estado alquímico do nigredo conhecido como Capus Corvi. Evoca a mortificação, reduzindo aos ossos da veracidade psicológica. São as inibições, sublimações, coobações ou digestões da matéria. É símbolo da solidão, do isolamento voluntário, daquele que resolve viver um plano superior. Na maior parte das crenças, o corvo aparece como herói solitario, muitas vezes demiurgo ou mensageiro divino. É uma figura guia, um psicopompo, que penetra, sem se perder, no segredo das trevas. No Japão é um mensageiro divino, na China é um pássaro solar, princípio associado ao Sol, representação do yang, ímpar. Consagrado a Apolo, é mensageiro dos deuses, obtém funções proféticas. O corvo aparece nas lendas célticas, tendo um papel profético. Na Gália eram animal sagrados.
Tendo isso em vista, consigo observar de uma forma mais ampla o que esse animal significa. Entendo que essa experiência desse final de semana carregou um significado muito profundo que talvez levarei um tempo para compreender. Não sei ao certo como sintetizar isso tudo, mas posso trazer alguns aspectos da minha experiência pessoal que podem ajudar a dar luz a isso que estou pensando.
Acredito que essa primeira vivência serviu como mote para o evento como um todo. Me percebia de fato a parte do grupo, Observando o que estava acontecendo, tanto quanto me observando. Muitas vezes essas duas tendências não pareciam coincidir. Me sentia compelido a prestar atenção ao que estava acontecendo no ambiente, estar presente, conseguir assimilar tudo que estava sendo dito, ao mesmo tempo existia algo interno acontecendo, vários pensamentos apareciam para mim e não conseguia me concentrar direito.
Demorou para entender que tudo aquilo era muito intenso para mim. Levei um bom tempo me resguardando do mundo, envolto aos meus próprios pensamentos. Tentava compreender certos conceitos que venho adquirindo com minhas leituras. Refletia muito sobre tudo isso, porém não enxergava uma relação direta com o mundo em minha volta. Existiam muitas intenções sobre tudo, muitas propostas que sentia que nunca conseguiria levar a cabo. Acredito que essa experiência me fez compreender de forma mais concreta tudo que estava no abstrato.
Me dei conta de uma série de coisas. Percebia como o ambiente tem uma importância para criar uma percepção sobre a realidade. Estava num bairro que era um tanto familiar para mim. Mas de repente pude assumir um novo olhar sobre a territorialidade em que estava inserido. Muitos momentos em que dava uma pausa para fumar, percebia os movimentos do local: trabalhadores realizando construções, crianças jogando futebol, carros no tráfego, prédios e mais prédios. E havia o momento da vivência. Haviam pessoas ali contando suas histórias, interagindo entre si. Existiam meus sentimentos, meus desconfortos. Existia o contato com os outros, naquele momento presente.
De repente chegou a minha vez de falar. Não esperava que iria me abrir tanto sobre mim mesmo. Me senti um pouco exposto, mas vejo que foi necessário, já que os outros também falaram sobre si. Um ponto que se destacou foi a minha auto-exigência excessiva. Esse primeiro momento apareceu mais com a minha relação aos outros. Existe uma crença inconsciente de querer ser perfeito, de dar conta de tudo. Então estou sempre em busca de conhecimento. Não acredito que essa busca seja de todo desnecessária, vejo como um traço importante para mim. Porém, vejo o excesso disso e como cria uma necessidade defensiva perante o mundo, não me permitindo ser quem eu sou, sempre buscando algo a mais daquilo que já estou sendo.
Essa auto-exigência apareceu em dois momentos. O primeiro, foi ligado a relação com os outros, no segundo em relação a mim mesmo. Percebo que também exijo de mim mesmo, quero ser perfeito também para mim mesmo, que tudo ocorra bem, que tudo esteja dentro dos conformes. Consigo entender melhor minha necessidade de controle.
De resto percebo que houve uma mudança sensível sobre como vejo minha própria vida e a minha relação com outros. No final do evento, me senti extremamente exausto. Compreendi que todo esse processo sugou minhas energias e como isso acontece em vários momentos quando estou com outras pessoas. Talvez cheguei a conclusão que de fato eu preciso me fechar um pouco para o mundo para tentar me preservar. Porém, me questiono em relação a isso. Tudo isso talvez faça parte do processo, talvez eu não deveria tentar excluir algo de minha vida, mas tentar me aproximar disso de uma maneira mais sábia.
Também tive uma compreensão maior sobre algumas reflexões que venho tendo. Tinha a certeza que a realidade é criada a partir da relação. Essa experiência me fez ter um entendimento mais aprofundado em relação a isso. Tudo que foi experienciado ali tinha uma verdade muito contudente, e aquilo só poderia ser compreendido a partir daquele espaço e tempo. No final das contas somos uma partícula diante de um todo, que sempre se move, que sempre está modificando, a cada experiência.
Ali ficou claro que as questões de nossa sociedade são acompanhadas por uma subjetividade. Tudo que está presente em nossa história, em nossa cultura, está presente também nas pessoas, em sua vivência de vida e a vivência daqueles que se relacionam. Para mim fica claro, que não há respostas prontas para as questões sociais, que a psicologia pode sim ter um papel na nossa sociedade, pois carregamos marcas que devem ser levadas em consideração.
Aqui é pertinente falar sobre a Teoria de Campo. O campo seria justamente esse espaço compartilhado, essa experiência no aqui e agora. O campo é singular, ele não pode ser replicado. Então percebo que a vivência do fim-de-semana foi algo único, que revelou algo próprio das relações no presente. Isso me faz pensar nas relações com a sociedade, ou seja, a sociedade não é um bloco fixo, é um processo. Vivemos o social diante de outras pessoas no momento presente. Nos constituímos em relação ao outro. Então essa realidade é criada a partir da relação, ela é simultaneamente objetiva e subjetiva, então ela surge como uma gestalt, ou seja como uma totalidade.
Outra percepção que tive foi que não há uma teoria que defina completamente o que o ser humano é. Nunca conseguiremos adentrar os mistérios do que é o ser humano, nunca daremos conta de suas vicissitudes. Sempre estamos redescobrindo o que é o ser, até porque ele se refaz a todo momento. Então, entendo que o ideal descentralizador que vejo em Goodman não se dá apenas a partir práticas políticas, mas também uma proposta da descentralização de nós mesmos. Abolimos então a ideia de que existe um centro a governar nossas vidas. Uma verdade essencial para as coisas.